quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Joana leu: A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector

A paixão segundo G.H.
Clarice Lispector
Editora Rocco
180 páginas
"A escultora G. H. nos conta sua experiência vivenciada a partir do instante em que entra no quarto da ex-empregada, vê o surgimento de uma barata no guarda-roupas e a esmaga na porta. Daí em diante, tomada por uma mistura de medo e repulsa, G. H. vive com a barata durante horas e horas a sensação de ter perdido a sua 'montagem humana'. A incapacidade de dar forma aoque lhe aconteceu, a aceitar este estado de perda, a leva a imaginar que a alguém está segurando a sua mão. Desta maneira, o leitor passa a viver junto com a personagem esta experiência singular."

Esse é considerado por muitos como o grande livro de Clarice Lispector, e tem um enredo aparentemente banal, mas que se desdobra num conteúdo muito rico e denso, apesar de toda a história se desenvolver em torno de um simples inseto. Depois de despedir sua empregada, a protagonista vai até o quarto de serviço a fim de realizar uma faxina, imaginando que ele está uma bagunça. Já ao entrar no quarto, ela se depara com um desenho na parede, simples, feito com carvão, da silhueta de um homem, uma mulher, e uma criança de mãos dadas, que a faz pensar nos motivos que levaram a antiga empregada a rabiscar essa família; a partir daí começa  a paranoia da personagem, sobre o "ser", o "existir", e como as pessoas poderiam estar vendo sua imagem no dia a dia. Enquanto reflete sobre esse assunto, ela abre o guarda-roupas velho e encontra ali uma barata, inseto pelo qual ela revela sentir um nojo terrível. A imagem da barata velha ali parada só faz aguçar suas reflexões existenciais, e ela esmaga o bicho no vão da porta, que fica partido ao meio, com aquela gosma branca escorrendo de seu corpo. Então ela passa a analisar seus mais profundos sentimentos, se despindo de todos os pudores e medos que ela sentira até então, e, num rompante desafiador de seu último traço humano, ela decide provar o interior da barata. A partir daí, G.H. tenta justificar seus pensamentos e seus atos ao longo de sua vida, além de tentar entender a verdadeira razão de sua existência. 


Com a densa narrativa em primeira pessoa (e acho que não poderia ser diferente), onde cada palavra reverbera dentro do peito do leitor, a autora nos leva a uma reflexão pessoal sobre "quem sou" e "por que sou". 

"Diante de meus olhos enojados e seduzidos, lentamente a forma da barata ia se modificando à medida que ela engrossava para fora. A matéria branca brotava lenta para cima de suas costas como uma carga. Imobilizada, ela sustentava por cima do flanco empoeirado a carga do próprio corpo."

Essas são as sensações após matar uma barata: nojo e sedução: nojo pela matéria na qual o inseto vai se transformando, e sedução pela capacidade de acabar com a pequena vida que antes causava pavor. Clarice consegue definir esse sentimento com perfeição, e trabalhar com ela por vários parágrafos, sem deixar que ao assunto fique cansativo e desinteressante.

Ao longo da narrativa, a personagem deixa claro que não vai gritar, pois gritar seria assumir sua fraqueza. não gritar significa não demonstrar sentimentos, manter sempre a sua pose de autossuficiente. Ao analisar essa qualidade de G.H., passamos a entender melhor seu dilema interno, que a leva a ficar horas e horas simplesmente olhando para uma barata morta, com o corpo mutilado, que a faz refletir sobre as atitudes de toda sua vida, seguindo regras e convenções sociais, ainda que não acreditasse totalmente nelas. E por viver atrás dessa fachada de perfeição, ela carrega um ar de superioridade, revelado principalmente ao falar sobre a empregada demitida, referindo-se a ela como um ser menor, por causa da cor da sua pele. A autora deixa claro esse sentimento da personagem através de uma metáfora: a cobertura onde mora, pois ali ela está acima de tudo e de todos.

O mais interessante nesse livro é a formação das sentenças, de maneira confusa e pouco tradicional, como se elas realmente fossem um pensamento ou uma reflexão. Clarice explora esse estilo e nos transporta para dentro da cabeça de G.H., nos fazendo sentir seus dramas e seus temores, e nos levando, junto com ela, a desafiar seus limites e provar aquela coisa branca que saiu de dentro da barata.

Em alguns momentos o livro parece assumir um cunho religioso, mas isso é apenas parte do cair em si, da descoberta pela personagem de que nada somos perante a grandeza da vida, do universo e de seu criador, seja ele quem for. A consciência de que esse criador realmente existe e está presente em todas as coisas, além da nossa vontade e mesmo da nossa sabedoria.

A escrita da autora é impecável; é impossível não se colocar no lugar dessa mulher aparentemente tão segura, e que vê todas as suas máscaras caírem diante de um ser tão pequeno e tão perturbador. Na verdade, após terminar a leitura, concluí que a própria Clarice era uma pessoa emocionalmente perturbada; ninguém explora tão bem assim uma neurose se não estiver vivendo-a pessoalmente.

Joana Masen

@joana_masen

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