Leite derramado Chico Buarque editora Cia. das Letras 200 páginas |
"Um homem muito velho está num leito de hospital. Membro de uma tradicional família brasileira, ele desfia, num monólogo dirigido à filha, às enfermeiras e a quem quiser ouvir, a história de sua linhagem desde os ancestrais portugueses, passando por um barão do Império, um senado da Primeira República, até o tataraneto, garotão do Rio de Janeiro atual. A fala desarticulada do ancião cria dúvidas e suspenses que prendem o leitor. O discurso do personagem parece espontâneo, mas o escritor domina com mão firme as associações livres, as falsidades e os não ditos, de modo que o leitor pode ler nas entrelinhas, partilhando a ironia do autor, verdades que o personagem não consegue enfrentar. Tudo, neste texto, é conciso e preciso: como um quebra-cabeças bem concebido, nenhum elemento é supérfluo. É espantoso como tantos personagens diferentes ganham vida neste breve romance. O livro é obra de um escritor em plena posse de seu talento e de sua linguagem."
Como fã de Chico Buarque crio sempre as melhores expectativas em torno de seu trabalho, e sempre quiser ler os livros escritos por ele. "Leite derramado" foi o primeiro que li, e no início parecia que não ia ser tudo aquilo que eu esperava. Mas ao longo da leitura, fui me envolvendo com as lembranças narradas pelo personagem, e me encantando com a técnica usada por Chico para contar esta estória: ele escreve os capítulos fora da ordem cronológica em que os fatos ocorreram, dando um charme especial ao texto.
O personagem principal é um idoso que está no hospital, e começa a contar a história de sua vida para a filha, e a contação se estende às enfermeiras e a qualquer outra pessoa que entrar no quarto. O foco de sua narrativa é o amor que sentia por sua esposa, Matilde, e ele vai e volta a esse assunto por diversas vezes, contando aos poucos como foi sua relação com ela, e como ele sofreu ao ser abandonado pela mulher com a filha pequena.
Enquanto o autor vai contando tudo o que o personagem viveu, desde que ele era de uma família respeitada na época Primeira República, até o momento em que entrou em decadência e foi perdendo tudo o que tinha, inclusive a casa em que morou com Matilde, ele também vai mesclando fatos históricos do Brasil, algumas vezes incluídos na estória para dar o tom dramático ou a ironia ideal que ela precisa.
O homem hospitalizado conta em detalhes muitas passagens de sua vida, e, em alguns momentos, não fica muito claro para o leitor se ele realmente viveu aquilo ou se está apenas divagando enquanto espera a morte. Isso é reflexo do talento de Chico para criar estórias.
A noção de tempo é dada pelos costumes de cada personagem, de onde é possível perceber a que época o idoso está se referindo: ele fala sobre os vestido que Matilde usava, sobre o piano que sua mãe sempre tocava, e vai evoluindo até mencionar os costumes adotados hoje em dia pelas pessoas, como quando fala sobre o tataraneto que namora uma moça cheia de tatuagens e piercings, o que para ele é inconcebível.
Com tanta riqueza de detalhes e fatos históricos inseridos na estória de forma sutil, o livro poderia ficar cansativo, mas não, ele é muito dinâmico e proporciona uma leitura muito agradável. A cada página a curiosidade pelo desfecho da estória só aumenta, e o leitor vive momentos de alegria e tristeza junto com o personagem.
Chico estrutura a obra com perfeição, misturando os fatos na mudança de um capítulo para outro, e depois retomando aquilo que tinha deixado um pouco para trás, e fica claro que ele não é competente apenas na composição de suas belas canções, mas também, é um ótimo contador de estórias.
Joana Masen
@joana_masen
Por mais que você tenha ressaltado muitos pontos positivos não consegui sentir vontade de ler a obra.
ResponderExcluirBeijos
Pepper Lipstick
Que pena Bia! Bom, quem sabe um dia vc se interesse...
ExcluirBjos!
Chico Buarque é tão maravilhoso que se escrevesse bula de remédio eu leria.
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